REVISTA
Édesnecessário dizer que 2020 foi um ano difícil para o mundo. A pandemia não veio aterrorizar apenas em seu aspecto viral propriamente dito, pondo em risco a saúde de bilhões de pessoas. Também jogou na UTI economias sólidas e entubou, já com risco de morte, economias fracas e suscetíveis a ações de tiranos. Ela nos trouxe o perigo dos anos nefastos das páginas de História em que o autoritarismo cerceava liberdades, prendia quem pensava diferente e usava tragédias para projetos de poder.
E 2020 chegou ao fim. Aos trancos e barrancos. Muito aprendemos sobre ciência, vírus, hipocrisia, falsos liberais, instituições e agentes políticos emaranhados com o Partido Comunista Chinês, democratas de mãos dadas com ditadores e uma eleição presidencial no mínimo bizarra e cheia de perguntas sem resposta na República mais sólida do planeta. O que esperar então para o próximo ano?
Em uma sociedade na qual sempre estamos olhando para fora, para os acontecimentos que se sucedem numa velocidade hipnotizante, numa era de total adoração ao imediatismo, onde encontrar alguma faísca de maturidade e renovação de que algo possa melhorar em 2021? Onde pousar o pensamento para refrigerar a alma e seguir sem desanimar?
Pessoas diferentes encontram estratégias diferentes de reclusão, análise e imersão. O que serve para mim pode não servir para você. Ao longo do ano de 2020, após o nascimento da Revista Oeste, construímos uma relação de afeto a cada semana. Por isso, sinto-me à vontade para dividir onde encontrarei o alento para seguir firme no ano que se aproxima. E, como o Natal nos mostra, a força está na própria vida, nas tradições que não se desbotam com o tempo, na família, nas palavras sábias de pessoas mais velhas que a atualidade parece não ter mais tempo de ouvir.
O ano era 2000. O mundo se preparava para a virada do milênio e eu me preparava para minha terceira Olimpíada. Ela seria disputada do outro lado do mundo, em Sydney, na Austrália, e seria minha primeira Olimpíada pelo vôlei de praia depois de disputar dois Jogos Olímpicos pelo vôlei de quadra.
Depois de uma sólida e dedicada carreira no vôlei de quadra, o sucesso de minha ida para o vôlei de praia era incerto, mas lá estava eu, começando mais um desafio em mais um ciclo olímpico. Foi quando apareceu um aliado importantíssimo, vital para prosseguir com um plano sério de duros treinamentos, estratégia e dedicação: o patrocinador dos sonhos.
Um patrocinador dos sonhos no esporte não é aquele que simplesmente estaciona na porta de sua casa com um caminhão de dinheiro e lhe deseja boa sorte. Um patrocinador dos sonhos é um aliado que tem um plano amplo, com várias vertentes e campos de ação para atletas de alta performance. Um patrocinador dos sonhos é um aliado que não lhe pagará apenas um bom salário, mas traçará planos de voo com uma equipe técnica composta de experts em estatísticas, análises, preparação física, medicina esportiva, marketing. Um patrocinador dos sonhos é aquele que lhe dá toda a segurança e estrutura para que você possa se dedicar ao máximo — e apenas isso — aos intensos e quase infinitos treinamentos, a única chance possível de chegar ao Olimpo. E lá estava eu, aos 28 anos, depois de sonhar — e trabalhar — por muitos anos com o patrocinador dos sonhos. Tudo o que eu precisava fazer era o que eu vinha fazendo desde os 16 anos. Treinar. Treinar feliz, treinar com dores, treinar no sol, treinar na chuva, treinar, treinar e competir.
Foi quando a vida, sem me preparar, sem me avisar, sem sequer me dar a mínima pista, disse: “Tenho outros planos pra você”. Atletas são pagos e patrocinados enquanto estão em atividade, treinando e competindo — afinal, as marcas que investem precisam aparecer e estar em evidência. Lesões cancelam contratos. Gravidez cancela contratos. E eis que em um hotel em Gstaad, na Suíça, no meio de uma importante competição para a classificação olímpica do ano de 2000, o mundo “desabou” em duas linhas verdes numa caneta branca comprada na farmácia: positivo. Eu estava grávida.
“A vida está batendo na porta de minha casa, e eu vou abrir, e eu vou celebrar”
Um silêncio inesquecível tomou conta de minha mente, de meu quarto de hotel, do mundo. Era como se eu estivesse em algum tipo de transe. “Não pode ser!”, pensei. Estava num relacionamento de muitas idas e vindas — hoje somos grandes amigos!. Em três segundos, um filme se formou em minha frente… “relacionamento… família… patrocínio… Olimpíada… imprensa…”. Não havia uma ordem nos pensamentos, e eu não conseguia organizar as ideias.
Depois de jogar mais duas etapas do Circuito Mundial (e de mais quatro testes positivos), decidi voltar ao Brasil e contar primeiro a meus pais toda a situação. Embora sinta um amor profundo por minha mãe, desde pequena sempre tive uma ligação muito forte com meu pai. Via nele um mestre e um amigo. Por isso, estava extremamente nervosa com a reação daquele a quem eu nunca quis desapontar na vida.
Viajei até a casa de meus pais e, eu e eles sentados à mesa da cozinha, disparei sem rodeios uma única frase: “Estou grávida”. Pelo semblante de minha mãe, aquele filme que passou em minha cabeça no quarto de hotel na Suíça agora acontecia com ela. Eu já não era nenhuma adolescente, mas, mesmo com 28 anos, a preocupação de mãe tomou conta da conversa. Ela começou a chorar e a repetir: “Mas e seu relacionamento? Vocês estão juntos? E o patrocínio? Você trabalhou décadas para isso… e a Olimpíada? O que a imprensa vai falar? Como será a vida?”.
Minha mãe sempre foi muito emocional e protetora e, confesso, já esperava que sua reação inicial seria assim. Meu pai, no entanto, estava em absoluto silêncio e aquilo me incomodava e deixava apreensiva. Foi quando, entre um suspiro de preocupação e outro, minha mãe, em lágrimas, ficou em silêncio e meu pai resolveu falar. Eu gelei. Para minha surpresa, ele olhou para minha mãe, e não para mim, e disse: “Você sabe quantas pessoas no mundo estão chorando neste exato momento, como você, porque alguém que elas amam está morrendo e as deixando? E você chora porque a vida está batendo na porta de minha casa?”. Imóvel e sem sequer piscar, parecia que eu havia entrado em outro estado de transe. E ele continuou: “Não me interessa a condição. A vida está batendo na porta de minha casa, e eu vou abrir, e eu vou celebrar”.
Um amor tão grande e tão divino tomou conta de mim. Comecei a tremer. Meu pai, segurando uma cerveja que acabara de abrir, repetiu: “A vida está batendo na porta de minha casa, e eu vou abrir, e eu vou celebrar”.
O ano de 2000 voou. A delegação brasileira na Olimpíada de Sydney não trouxe nenhuma medalha de ouro, mas eu, no Brasil, ganhei a minha. Gabriel, nome escolhido por meu pai por se tratar de “um mensageiro de boas notícias”, como ele mesmo ressaltou, decidiu nascer um mês antes do previsto e chegou pouco antes do Natal, no dia 19 daquele ano. O melhor presente de minha vida.
Os anos se passaram, eu me mudei para Los Angeles e, logo que cheguei à progressista Califórnia, participei de um grupo de treinamento para fazer parte de uma ONG chamada Pregnancy Help Center. Criada em 1976, essa ONG ajuda e acolhe mulheres grávidas que, por alguma razão, consideram o aborto, estão confusas e precisam de ajuda. A equipe é composta de vários voluntários, desde conselheiras (meu posto, a primeira pessoa com quem as mulheres conversam quando chegam lá) até médicos, enfermeiras, assistentes sociais, psicólogos, policiais etc.
Durante os anos que passei na organização, presenciei histórias muito impactantes de mulheres que, diante da proteção da legislação que favorece o aborto no Estado e da facilidade com que isso acontece, resolveram prosseguir no procedimento nas clínicas abortivas. Foram algumas noites sem conseguir dormir pensando naquelas moças de vinte e poucos anos que, em uma ficha, escreviam que já estavam no segundo, terceiro aborto. Obviamente, para a organização, toda mulher que decidia seguir a gestação, assistida e cuidada durante e após a gravidez gratuitamente por uma grande equipe, era motivo de muita celebração.
Nas muitas conversas que eu tinha com essas mulheres, em um gesto de conexão afetiva e empatia, eu relatava minha história. Contava sobre meu pai e as palavras que ele tinha dito na cozinha de sua casa, sobre os medos, as dúvidas, as lágrimas. E é exatamente dessas ocasiões, do encontro com mulheres fortes que desafiaram qualquer situação, que tenho guardadas hoje as medalhas mais preciosas de minha vida. Ao longo do trabalho na instituição, recebi algumas dezenas de fotos de bebês enviadas pelas mães. Elas relataram que as palavras de meu pai foram um bálsamo, uma luz para a única e possível decisão para aquela ocasião. Meu pai, já falecido naquela época, havia se tornado, sem saber, vida após sua morte.
E a vida não está apenas na gestação no ventre de uma mulher. A vida está nos detalhes que o imediatismo, a tecnologia em excesso, o egoísmo, a carreira na frente de tudo, a superficialidade das redes sociais escravizantes não nos deixam mais apreciar. Casais se separam não por falta de amor, mas por falta de paciência. Jovens estão em depressão não por problemas, mas pela proteção excessiva a que são submetidos.
Hoje, tudo tem de ser aceito. Tudo tem de estar “tudo bem” o tempo todo. E, quando vem um ano como 2020, não sabemos conversar, desaprendemos de pensar e discutir como sairemos de enrascadas pequenas, grandes, particulares e públicas, porque as ferramentas não estão no “tudo tem de estar bem o tempo todo”. Nossos filhos não podem ser envoltos em plástico-bolha e protegidos dos males do mundo, do sofrimento, dos desafios. Assim famílias são fortalecidas e homens e mulheres fortes são forjados.
Apesar do conturbado ano, foi um prazer estar aqui com vocês toda semana. Desejo a todos nós, parceiros na caminhada da defesa inviolável da coragem e da liberdade, que Johann Goethe (1749-1832), filósofo, cientista e escritor alemão, autor de Fausto, poema trágico e obra-prima da literatura alemã, nos inspire em 2021 com seu célebre pensamento: “No momento em que nos comprometemos, a providência divina também se põe em movimento. Todo um fluir de acontecimentos surge a nosso favor. Como resultado da atitude, seguem todas as formas imprevistas de coincidências, encontros e ajuda que nenhum ser humano jamais poderia ter sonhado encontrar. Qualquer coisa que você possa fazer ou sonhar, você pode começar. A coragem contém em si mesma o poder, o gênio e a magia”.
A coragem contém em si mesma o poder, o gênio e a magia. Um abençoado 2021.
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