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AConstituição informa que o Supremo Tribunal Federal deve cuidar apenas de questões constitucionais. Hoje, o STF decide qual time de futebol foi o campeão brasileiro em alguma temporada do século passado, se o presidente da República pode preencher cargos que sempre foram preenchidos pelo chefe de governo ou se parlamentares bandidos têm o direito de deixar em casa a tornozeleira eletrônica para participar de sessões do Congresso, fora o resto. Quem conhece o Timão da Toga não se surpreendeu ao saber que também o combate ao vírus chinês, que já sobrevoava em formação de esquadrilha numerosas regiões do país, fora anexado ao vastíssimo buquê de atribuições da corte cujo codinome em juridiquês ultracastiço é Pretório Excelso. No fim da tarde de 15 de abril do mais estranho dos anos, o STF resolveu que caberia aos governadores e prefeitos a montagem e a execução da estratégia da guerra, a definição do que seria fechado ou continuaria funcionando enquanto durasse a crise sanitária ou como deveriam comportar-se os governados. Ao governo federal restaria socorrer financeiramente Estados e municípios, arranjar dinheiro para sustentar os desvalidos, não se meter em assuntos alheios e rezar para que a economia sobrevivesse à paralisia.
Os ministros nem haviam guardado no armário a capa preta e os incumbidos de liderar a guerra contra o antagonista invisível já agiam com a prepotência de quem se acha munido de superpoderes. Com a arrogância de quem convivera desde criancinha com o inimigo que ninguém conhecia, governadores e prefeitos suprimiram o direito de ir e vir por tempo indeterminado, ordenaram que todo mundo ficasse em casa, fecharam todas as escolas, públicas e privadas, bloquearam acessos às cidades que administravam, interditaram estabelecimentos comerciais e indústrias. Avisaram que só deveriam usar máscara os profissionais de saúde (voltaram atrás quando a Organização Mundial da Saúde mudou de ideia e inaugurou uma nova palavra de ordem: use máscara), tornaram obrigatório o uso de luvas para impedir a disseminação do vírus que acampava em qualquer superfície. Em poucas horas, o autoritarismo epidêmico contaminou os escalões inferiores e se intensificou o confisco de direitos individuais indissociáveis do Estado Democrático de Direito. Amedrontados com um inimigo onipresente e invisível, aturdidos com o noticiário dos jornalistas de velório, milhões de brasileiros demoraram quase nove meses para compreender que a preservação da liberdade não é menos importante que a defesa da vida, e que o combate à pandemia pode ser travado sem que a economia se submeta à falência epidêmica. Ficou evidente que a fome e o desemprego também matam. E então a paciência do povo chegou ao fim.
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